Confissionário I

Eu vou te contar uma história. Preste bastante atenção...

Eu ainda me lembro do gosto do picolé de morango da Frutare que meu avô comprava aos montes durante o fim de semana. Eu amava tanto ele, não porque ele me dava sorvete, mas porque ele era o homem da minha vida. Eu lembro que eu queria ser como ele quando crescesse.


Eu também me lembro do sol sempre quentinho nas tardes de verão quando eu ia para a Praia da Sereia com meus pais e meu irmão. Eu brincava na areia o dia inteiro, e depois tomava banho. Eu amava tanto o sol, porque ele sempre me aquecia quando eu tinha frio.

Eu tinha asas tão coloridas e reluzentes naquela época, qualquer um que conviveu comigo naquela época pode facilmente dizer o mesmo. Eu era muito divertido de se estar e brincar. Eu tinha muitos amigos. Eu sinto muitas saudades daquela época tão abençoada. Viver sem preocupações ou arrependimentos ou tristezas. Só viver.

Mas em algum lugar daquela época, a semente do pecado foi plantada em mim. A semente que se desenvolveu à custa das minhas asas que apodreceram e viraram cinzas. Eu literalmente caí da graça, e me tornei um demônio. Aos 13 anos eu já não era mais puro e ingênuo. Eu era uma coisa maligna, digna do inferno.

Eu torturei crianças mais jovens que eu. Eu as xinguei, coloquei apelidos infames, destruí seus sonhos. Eu dava ideias como "empurrar fulano no corredor", ou "tirar as roupas de cicrano em público". Eu fiz todas essas coisas perversas que só os piores tipos de pessoas são capazes de fazer e dormir bem à noite. Agora que eu me lembrei, eu realmente dormia tranquilamente à noite.

Eu odiava o amor e fazia de tudo para atrapalhar os namorados que eu encontrava no caminho. Durante essa época, eu destruí muitos casais que poderiam muito bem estar juntos até hoje. Espalhava boatos e mentiras, forjava cartas de amantes e tirava fotos comprometedoras que por acaso iam parar nas mãos dos namorados.

Eu não via propósito em nada que existia. A vida não tinha sentido algum. Por que viver, se você um dia vai morrer de qualquer jeito? Por que criar, se tudo está destinado a ser destruído um dia? E eu seguia o pensamento. Eu não queria morrer, mas eu queria que os outros morressem, que o mundo inteiro morresse, e eu queria ficar sozinho, rindo dos mortos e dos deuses.

Eu não vivia, eu apenas existia. Eu comia porque meu corpo tinha fome. Eu bebia água porque meu corpo sentia sede. EU não sentia sede ou fome ou dor. Eu apenas... acordava toda manhã e desejava que o mundo inteiro explodisse e ia dormir. O meu maior desejo era que o diabo me desse poderes para eu poder destruir o mundo. Tão fanático eu era que até me envolvi com coisas como Bruxaria, Magia Negra, Satanismo... você nomeia.

Nessa época, eu praticava com frequencia a minha prostituição. Eu fazia sexo com homens de todos os tipos. Eu não me importava. Eu só queria usar aqueles homens tanto quanto eles me usavam. Tanto que muitos me davam presentes, ou me faziam favores pessoais em troca de sexo. E eu secretamente os apunhalava pelas costas, porque eu via que, na Bíblia, está escrito que os Sodomitas e Fornicadores vão ser atirados numa espécie de lago de óleo fervente, então eu apenas ria do destino que aguardava aqueles homens. E eu, óbvio. Esse era o tipo de pessoa que eu era, sem coração algum.

Aí então eu me apaixonei, e me tornei tudo aquilo que eu sempre detestei no passado. Eu fui dado um coração. Eu jamais poderia ter acreditado que alguém como eu fosse capaz de amar alguém. Mas eu fui traído, fui usado mais uma vez, e dessa vez eu não tinha feito nada de ruim para aquela pessoa. Pelo contrário, eu fui a melhor pessoa que eu jamais poderia ser. Eu fui compreensivo, paciente, carinhoso, amável, honesto e fiel. Eu fui tudo que eu sempre quis encontrar numa pessoa. Então, quando acabou o meu coração se partiu, e o meu ódio apenas comemorou.

Mas eu já não era mais repulsivo. Graças àquela pessoa, eu passei a me amar. Então eu não sabia mais ser cruel, eu só sabia ser amável e paciente e honesto e compreensivo. Eu me perdi completamente. Até hoje em dia eu nem sei mais. Eu bem que tento às vezes, mas realmente já não consigo mais maltratar os outros. Agora eu vivo numa espécie de penitência. Agora eu estou pagando por todo o mal que eu espalhei.

Eu tinha que escapar daquele monstro que eu era, por causa da pessoa que me amava. Eu tinha que ser o melhor para aquela pessoa, então criei essa máscara. Mas quando acabou, e a máscara perdeu o sentido, eu já não tinha mais o que esconder. Eu me tornei a máscara. Agora, tudo que resta para mim é viver essa mentira. Viver com essa máscara que não sou eu, porque eu já não posso voltar atrás. Eu não posso nunca ser quem eu era. Nunca mais.

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